Recebi por e-mail esta matéria sobre a minissérie Maysa - Quando Fala o Coração.
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"Minissérie global simplifica e distorce biografia de Maysa
Principal vítima das inconsistências do programa é a própria cantora.
LIRA NETO Ao assistir aos capítulos de "Maysa - Quando Fala o Coração", logo me veio à lembrança o dia em que um jornalista quis saber a opinião da escritora Rachel de Queiroz a respeito da adaptação de seu romance "Memorial de Maria Moura" para a televisão, à época também levada ao ar na forma de minissérie. Rachel, com irresistível senso de humor, sapecou: "Até estou gostando; eles lá na Globo é que não gostaram muito de meu livro, pois trataram de mudar tudo na história".
Do mesmo modo, no caso da minissérie sobre Maysa assinada por Manoel Carlos e dirigida por Jayme Monjardim, os roteiristas parecem não ter gostado muito da verdadeira história da cantora de olhos felinos e alma atormentada.
É compreensível que na transposição de qualquer história para as telas seja permitido -e necessário- o recurso a algumas licenças poéticas, como o acréscimo de diálogos imaginários e situações fictícias. É preciso, claro, amarrar o roteiro e conferir fluência à narrativa. O problema é quando esse tipo de artifício legítimo, no caso de personagens reais, sobrepõe-se à história verdadeira, oferecendo ao telespectador uma visão distorcida dos acontecimentos, uma contrafação da biografia dos protagonistas.
Baniram Nara Leão
O personagem de Ronaldo Bôscoli, por exemplo, é apresentado na série como um conquistador abobalhado e, por vezes, patético. Bôscoli, cafajeste assumido, devorador de mulheres, jamais teve pudores de levar Maysa para a cama pelo fato de ser comprometido com outra moça, como nos quiseram fazer crer os roteiristas da minissérie. A propósito, não se sabe por qual motivo eles perderam a oportunidade de dizer que, em vez da simples atriz de teatro amador que aparece no roteiro, a então noiva de Bôscoli atendia pelo nome de Nara Leão. Ela mesma, a musa da bossa nova, que foi banida da história.
Em um dos capítulos apresentados na semana passada, Bôscoli tenta convencer Maysa de que gravar um disco bossanovista seria algo importantíssimo para Tom e Vinicius. Como se desde seu segundo disco de dez polegadas, de 1957, ela já não gravasse sistematicamente canções da dupla.
Por vezes, há a tentativa de idealizar certos personagens e amenizar as asperezas da vida real. Como quando se coloca André Matarazzo sentado candidamente na plateia da cerimônia de entrega de um prêmio concedido a ex-mulher. Ele não estava lá.
Nas cenas da histórica temporada de Maysa em Buenos Aires ao lado de Bôscoli, Roberto Menescal e o célebre Tamba Trio, ela surge cantando bolerões rasgados. Uma pena. A minissérie sonegou assim ao telespectador a informação de que, justamente naquela viagem, Maysa se tornou a primeira cantora brasileira a cantar um repertório de bossa nova fora do Brasil.
Angústia virou capricho
Assim, a principal vítima das inconsistências e simplificações da minissérie é mesmo a própria Maysa. Todas as suas perplexidades, seus tormentos e suas angústias foram reduzidos a meros caprichos e desvarios de uma moça mimada. A complexidade de sua personalidade intensa e autodestrutiva, os abismos existenciais de sua alma, tudo isso foi transfigurado em queixumes e rompantes de uma rebelde sem causa, traumatizada pela separação do marido.
O esmero da produção, a exuberância dos cenários, a perfeição dos figurinos, a assombrosa semelhança da atriz Larissa Maciel com a diva estão arrebatando o público e arrancando suspiros até mesmo de parcela da crítica especializada.
Resultado: Maysa está de novo na pauta do dia. Isso é ótimo para sua memória e faz justiça a seu talento. Mas, se os telespectadores estão encantados com a Maysa da televisão, o que diriam se conhecessem a verdadeira Maysa, em carne, osso e amargura. Humana, demasiadamente humana.
LIRA NETO é autor de "Maysa: Só numa Multidão de Amores" (editora Globo, 2007) "